O sol e os planetas (ou: A anatomia de um gol coletivo)

Futebolisticamente, sou um coletivista convicto. No sentido de ser anti-individualista. Ou seja, sempre vou dar prioridade ao coletivo sobre o individual, em qualquer aspecto. E não poderia ser diferente quando o assunto é uma jogada de gol.

Não me entendam mal, também gosto de gols de técnica individual. O voleio do Arrascaeta contra o América é qualquer coisa. Outro gol que me marcou muito é o primeiro do Brasil na Copa de 2006, um chute do Kaká de esquerda contra a Croácia. Lembro da minha cara “derretendo” naquele dia depois daquele lance. E vários outros, desnecessário citar.

Mas curto muito mais um gol coletivo, desses em que as movimentações e escolhas dos jogadores simplesmente desorganizam e deixam as defesas perdidas. É tão atordoante que nem é preciso técnica muito apurada para executar. É só fazer “mais ou menos”, porque as ações coletivas tornam tudo mais fácil. Sempre me lembro do segundo gol do Goulart contra o Náutico em 2013. Eu estava no estádio no dia, depois revi o gol em vídeo umas mil vezes. É incrível como a defesa pernambucana simplesmente não vê como Goulart foi parar ali.

Mas esse texto, como podem imaginar, é sobre o golaço do Cruzeiro contra o Villa Nova no sábado. Vou tentar dissecar os movimentos ofensivos pra tentar mostrar porque eu gosto muito mais de gols assim.

(os créditos de todas as imagens abaixo são do globoesporte.com)

Rafinha, sozinho, não tem opção senão cruzar. Por sorte, a bola volta pra ele

Ironicamente, tudo começa com um erro. Rafinha, aberto na direita, recebe lançamento de Egídio. Henrique e Fred já estão na grande área, e Mancuello corre pra lá. Ninguém se aproxima de Rafinha para o jogo apoiado, de forma que só resta a ele tentar o cruzamento. Ele erra.

Mancuello se desloca e leva dois com ele, abrindo espaço na meia-lua

Por sorte, a bola volta pra ele. E aí é que começa a trama bem feita. No momento em que Mancuello percebe que o cruzamento falhou, muda a direção de sua corrida, para sair do centro ao invés de dar profundidade. Esse movimento puxa a marcação de um jogador do Villa Nova, que depois “transfere” a responsabilidade para outro mais atrás com um gesto. E isso é suficiente pra deixar Fred e Henrique no mano a mano dentro da área e abrir um espaço próximo à meia-lua.

Fred percebe o espaço e vai até ele, atraindo todo o lado direito da defesa do Villa para o centro

Rafinha, então, escolhe centralizar com a bola. Nesse momento, vemos Edilson avançando aberto pra ser opção, mas não é acionado. Ao mesmo tempo, Fred percebe o espaço aberto por Mancuello e se movimenta até ele. Rafinha já percebeu e toca. Dois jogadores do Villa também percebem e saem à caça: um era o marcador “original” de Fred, e outro é um volante que está chegando. Mas já é tarde: a bola chega em Fred, que já sabe o que vai fazer. Ele tinha a opção de Arrascaeta que chegava logo atrás dele, sem marcação. Mas ele já havia escolhido tocar de primeira para Henrique, ainda na área.

Henrique recebe e tem várias opções, inclusive Cabral totalmente livre pelo movimento de Fred

Esse movimento de Fred desorganiza totalmente a defesa do Villa Nova. Henrique fica sozinho com um marcador, que não está totalmente em cima dele, permitindo receber o passe. Nesse momento, Henrique já tem várias opções. Devolver no Fred, tentar um passe de efeito para Mancuello atrás dele, ou amortecer pro Rafinha chegar. Mas talvez a melhor opção ali fosse abrir para Ariel Cabral. Note o argentino se movimentando ali com muita tranquilidade, devido ao espaço aberto pela movimentação de Fred.

Henrique escolhe Rafinha, que também tem opções: Cabral, Fred ou finalizar

A opção é escolhida é a deixadinha. Rafinha, depois de iniciar a jogada lá atrás, é simplesmente ignorado pela defesa do Villa, pois a atenção de todos os jogadores está voltada para Fred e Henrique, as maiores ameaças. Rafinha sequer é incomodado. Ele também tinha algumas opções além de chutar: também poderia tentar dar o passe pra Ariel Cabral, que se sofresse de agorafobia estaria com problemas. Ou para Fred, que passava às costas do seu confuso marcador, na dúvida entre acompanhar o camisa 9 ou tentar parar Rafinha.

Rafinha escolhe finalizar e o faz com maestria: o gesto técnico mais “difícil” da jogada

Rafinha escolhe finalizar, e o faz com categoria no canto direito do goleiro — no que talvez seja o único gesto que exigiu um pouco mais de técnica.

Fora da bola

Como diz a música do Skank, “olhando para a bola eu vejo o sol”. Ela é a estrela do espetáculo e é natural que chame todas as atenções. Mas é importante ver o movimento dos jogadores que não estão com ela, ou até mesmo longe dela. A movimentação destes, se bem feita, no fim das contas acaba facilitando as coisas para os companheiros. Afinal, jogar com espaço é muito mais fácil.

Jogadores de futebol jogam (muito) mais sem a bola no pé do que com ela. Façamos uma conta bem tosca: um jogo tem 90 minutos, mas em média só 60 de bola rolando. Considerando 30 pra cada time, e que não dá pra dois jogadores terem a posse ao mesmo tempo, divida 30 por 11 em campo e você terá aí uma média de 2:44 de tempo na bola pra cada jogador. Isso sem contar o tempo de bola viajando no ar ou pelo chão, além de ignorar que os jogadores de defesa ficam muito mais com a bola do que os atacantes.

Ok, dois minutos e meio na bola. E o que os jogadores fazem nos outros 27:30 da posse do seu time? Se movimentando e abrindo espaço. Como no lance acima: Mancuello sequer fica próximo à bola, mas sua movimentação é fundamental pra abrir o espaço que Fred enxerga. Fred, por sua vez, movimenta-se de forma inteligente, arrastando mais dois consigo. Cabral só fica totalmente livre por isso. E Rafinha é ignorado também por isso: a atenção da defesa estava totalmente voltada para outros jogadores. Isso é jogar futebol, sem a bola.

Então, Samuel Rosa que me perdoe: de fato, o “sol” chama toda a atenção, mas ele não seria a mesma coisa sem os “planetas” que orbitam a seu redor.

Os Cruzeiros de Mano Menezes

(originalmente publicado no blog Nós Somos Cruzeiro, do Portal UAI)

Depois de dois trabalhos emergenciais, em que pegou o time no meio da temporada e com objetivo claro de fugir do descenso no Brasileiro, Mano Menezes pôde finalmente começar uma temporada na Toca II. E, conforme ele mesmo vinha dizendo, a proposta de jogo para esta temporada é outra: um time veloz com a bola nos pés e agressivo sem ela, de forma a tomar as rédeas do jogo, de ser o protagonista. Em resumo, um futebol com mais a cara da escola cruzeirense.

Nas duas temporadas anteriores, o diagnóstico era o mesmo: o time sofria gols demais. Mas a razão era diferente. Em 2015, Luxa deixou terra arrasada, e Mano apostou num time marcando por zona, com as linhas mais retraídas e bem próximas. Já em 2016, isso era por opção: Paulo Bento usou um modelo de jogo de grande volume ofensivo, o que Mano destacou logo em sua primeira entrevista nesta segunda passagem. Ele reduziu o volume ofensivo, mas como o elenco era melhor que o do ano anterior, conseguiu produzir mais ofensivamente.

Agora, começando um trabalho novo, o time realmente parece diferente. Mano vem usando principalmente duas equipes, que ele diz não serem titulares e reservas. Pode até ser, mas está claro que um time joga melhor que o outro, tendo em vista o novo modelo de jogo. E, ainda assim, há pequenas diferenças em relação ao sistema, devido às características dos jogadores.

Os “titulares” do Cruzeiro de Mano no início de 2017

Ambos os times jogam em linha de 4 com dois volantes, e à frente dois jogadores pelos lados e dois na faixa central. Para o time de cima, eu chamaria a formação de 4-2-4-0, pois a intensa movimentação do quarteto de frente não permite dizer quem é o jogador que fica mais à frente. Em tese é Sobis, mas ele não fica entre os zagueiros como um nove típico, se mexe bastante para ajudar na construção, e Arrascaeta também avança com frequência para finalizar. O uruguaio, por sua vez, não é o camisa 10 clássico, centralizado que fica distribuindo passes, é muito mais próximo de ser um segundo atacante. Daí o time jogar sem um homem de referência.

Robinho é ponteiro passador, ou seja, joga pelo lado, mas centraliza para pensar o jogo junto aos outros, abrindo o corredor direito pra Ezequiel ir ao fundo. Do lado oposto, Alisson é um ponteiro mais típico: veloz, bom no um contra um e entrando na área pra finalizar quando a jogada é do lado oposto. Também é o que se chama de “ponteiro de pé trocado”: um destro do lado esquerdo, o que faz com que seu movimento natural seja cortar pro meio e bater, ou mesmo se aproximar dos outros tentar uma tabela.

Mais atrás, temos dois volantes que sabem jogar com a bola. Aliás, nenhum volante do elenco do Cruzeiro é tipicamente destruidor, aquele cabeça-de-área clássico que fica desarmando e depois entrega para alguém jogar. Cada vez mais no futebol atual, essa posição é que faz o time jogar. Henrique e Cabral alternam com frequência no apoio, mas tipicamente o primeiro fica mais pra ajudar na saída, no primeiro passe, e o segundo aparece nos espaços pra oferecer linhas de passe e continuar a progressão.

Na última linha temos Léo e Manoel, mas não creio que essa será a zaga titular. A ideia, no futuro, será usar Manoel e Caicedo, ou mesmo Dedé e Caicedo. Isso porque o equatoriano é veloz, assim como Dedé e Manoel, e pra jogar com a linha defensiva longe da própria área, de forma a compactar o time ofensivamente, é importante ter zagueiros velozes, para poder ter uma boa recuperação em caso de bolas longas por cima da defesa.

O time “reserva” de Mano neste início da temporada 2017

Já o outro time joga num 4-2-3-1 mais claro, muito por causa da presença de Ábila, um centroavante muito mais típico. Ele não possui o perfil de recuar pra ajudar na construção do jogo, e quando isso acontece, a probabilidade da jogada morrer no pé dele é alta. Pra mim essa é a razão pela qual ele não é titular: não é a falta de gols, obviamente, mas sim porque ele ainda não se encaixa bem no modelo de jogo que Mano quer para o Cruzeiro, de ter um sistema ofensivo veloz, maleável e sem posições definidas. Não é coincidência que esta formação tenha tido mais dificuldades em controlar os jogos.

Na meia central, o garoto Alex tem sido bastante utilizado. É um jovem, tem talento e boa visão de jogo, mas acredito que ainda se movimente pouco para ser um central nestes tempos de futebol tão sem espaço. Hoje em dia é preciso pensar correndo, ou mesmo pensar antes da bola chegar. Ainda falta mais intensidade ao garoto, de procurar um espaço, de sair de sua característica.

Nas outras posições temos características semelhantes à do time principal. Zagueiros rápidos, laterais com bom apoio, volantes que sabem jogar e um ponteiro mais armador (Rafinha) e um mais veloz (Élber). Apenas nas duas funções centrais do ataque é que existe uma diferença maior, como dito acima.

Diante disso tudo, cabe a pergunta: onde entraria Thiago Neves? Com o time de cima já azeitado e bem entrosado, me parece difícil tirar um jogador. Vejo quatro possibilidades:

  1. na vaga de Alisson, com TN jogando aberto pela esquerda. Nesse caso, com dois armadores pelos lados, isso iria contra um princípio de jogo que Mano diz gostar, que é ter dois jogadores de lado com características diferentes: um mais armador e outro mais ponta típico.
  2. na vaga de Alisson, com TN jogando centralizado e Arrascaeta como ponteiro esquerdo. Essa se aproxima mais do que Mano gosta, já que Arrascaeta é mais atacante do que meia, mas isso significaria tirar o uruguaio da posição onde ele rende mais, que é ter essa liberdade na faixa central.
  3. na vaga de um volante e recuar Robinho pra armar de trás. É bastante improvável que Mano comece algum jogo assim, pois é uma formação desequilibrada, servindo mais pra circusntâncias de jogo como recuperar um placar adverso com o adversário bem recuado.
  4. na vaga de Sobis, com Arrascaeta e TN alternando por dentro. Ainda mais improvável, pois TN é bem mais meia do que atacante, e faria com que Arrascaeta ficasse mais preso à frente, minando seu melhor rendimento.

Um possível time com a entrada de Thiago Neves e outros jogadores

Dessas, acredito que a primeira opção seja a mais provável. Não ter um ponta típico é uma coisa a analisar, mas isso pode ser compensado com a ultrapassagem dos laterais. De qualquer forma, é bom saber que existem muitas variações possíveis pela versatilidade que Thiago Neves possui.

Ainda é preciso mais tempo para que possamos ver se a nova ideia de Mano Menezes vai funcionar. As atuações do clássico e contra o Tupi chamaram a atenção pela imposição. Resta saber se isso se tornará uma constante. Uma coisa, porém, é certa: a ideia é respeitar a identidade da escola cruzeirense de futebol.

Acabou o crédito

(originalmente publicado no site Diário Celeste)

Acabou o crédito.

Acabou o crédito pra você, Gilvan. Sob sua gestão, ganhamos dois brasileiros seguidos. Um fato raro para qualquer equipe, não só na era dos pontos corridos, mas em toda a história do nacional. E é ainda mais impressionante se consideramos que não é um clube do eixo Rio-SP. Um feito, sem dúvidas. O time montado em 2013 e mantido em 2014 ficará para sempre nos corações cruzeirenses.

Mas todas as glórias que você colheu nesse período foram pisadas e esmigalhadas em mil pedacinhos, sem dó nem piedade, em 2015 e 2016. Por uma série de decisões ruins tomadas por você, Gilvan. Bancar a vinda de alguns jogadores, vetar a vinda de outros, baseado apenas no seu “conhecimento” de futebol dentro de campo — que, assuma, não é tão grande quanto você pensa. Trazer um ex-treinador em atividade, simplesmente porque você “gostava” dele, é estar vivendo do passado. Depois, ao determinar o caminho “econômico” na escolha do treinador para este ano, efetivando um cara esforçado e trabalhador, mas que ainda não estava preparado para comandar um clube tão enorme. No futebol moderno, principalmente no alto nível, não se economiza em treinador, Gilvan. Perdemos vários meses de trabalho, e os impactos desta escolha estão presentes até hoje.

Acabou o seu crédito, Gilvan.

Acabou o crédito pra você, Vicintin. Ter suas origens em uma torcida organizada o fez ser desejado por muitos como diretor de futebol. Você acabou virando vice-presidente de futebol, mas deu no mesmo: a torcida se sentiu representada dentro do clube, que apostou todas as fichas em você. E depois de um monte de erros cometidos em 2015, com a reformulação na saída do Luxemburgo, imediatamente você trouxe um treinador pensando primeiro em tirar o Cruzeiro da péssima situação, e depois em um projeto maior. As coisas funcionaram bem e você angariou crédito.

Mas este seu passado como torcedor não serve como desculpa nem como atenuante para a quantidade de erros que foram cometidos no departamento de futebol. A efetivação de Deivid pode ter sido uma ordem de cima, mas a demora em corrigir o rumo quando finalmente ele saiu é responsabilidade direta sua. Sabemos que é o presidente quem manda, mas também é seu papel mostrar pra ele quando ele está equivocado, Vicintin. Tem que bater a mão na mesa, exigir autonomia se não a tiver, ou falar com firmeza se discordar. Tem que dar a cara a tapa nos momentos ruins também, não só nos bons.

Acabou o crédito pra você, Scuro. Sabemos que você é um gestor moderno, tem formação, teve experiência em times menores, se preparou para o cargo. Gente que o futebol brasileiro como um todo precisa ter mais. Junto com Vicintin, você foi o responsável por trazer o Mano e fazer com que nosso 2015 fosse menos pior. Você vem tentando, na medida do possível dentro do que lhe é permitido, fazer contratações, estudando o mercado. Ali você ganhou pontos.

Mas a sua formação e credibilidade não podem servir de escudo para defender dos erros no planejamento da temporada, Scuro. A saída de Mano o dificultou, mas o remanejamento do elenco que está sendo feito agora devia ter sido feito antes. E com um treinador que tivesse respaldo para que pudesse desenvolver um trabalho e chegar com o time pronto para o Brasileiro, que no fim das contas é o que importa: ninguém tá nem aí pro Estadual. Em 2013 foi assim.

Acabou o crédito pra você, Bento. Quando você chegou, a torcida apoiou e entendeu que levaria um tempo até você se situar no caos que é o futebol brasileiro. Vindo de uma escola moderna, a portuguesa, que é a que mais contribui mundialmente para o entendimento teórico do futebol, você chegou com respaldo. E o time mostrou, várias vezes, boa evolução em campo, jogando melhor que o adversário em períodos longos do jogo. E ainda que os resultados não aparecessem, dava pra ver alguma coisa sendo feita. Talvez isto seja o que mais dá pra ver no seu trabalho.

Mas você vem tomando algumas decisões extremamente questionáveis, pra dizer o mínimo. Mesmo tendo vários jogadores no DM e um elenco curto disponível, certas decisões do onze inicial e em algumas substituições não são muito bem explicadas. Eu sou um dos caras que mais tenta entender todas as decisões, porque tento ver também o lado tático, o que o jogo pede, a estratégia, o placar, a circunstância do jogo; não olho só o lado técnico. Mas mesmo assim não consegui entender várias das suas decisões ultimamente, Bento. Se você tem convicções, então as explique. Se você escala um jogador por política do clube, então deixe claro quem são e quem disse isso. Mas não nos mande sinais misturados: é sua convicção ou é política do clube?

Acabou o crédito pra vocês, jogadores. Sim, todos sabemos que vocês estão tentando fazer o que podem. Eu sou otimista e acredito que ninguém está ali de brincadeira, ou fazendo corpo mole — com uma notável exceção, que não precisamos dizer quem é. Estamos cientes de que vocês estão tentando jogar da melhor forma possível dentro daquilo que lhes é pedido.

Mas nessas horas de crise, a gente exige que pelo menos um pouquinho de suor a mais seja derramado. Nem sempre os gritos de “raça, raça” da torcida fazem sentido; em alguns jogos isso é a única coisa que não falta. Sabemos que vocês nem sempre conseguem fazer o melhor que sabem, pois o futebol é coletivo e o mau desempenho de um quase sempre atrapalha o bom desempenho de todos. Mas queremos fome de bola, a famosa intensidade, mesmo se não tiver muita organização. Queremos cada disputa como se a bola fosse o único copo d’água num deserto enorme. Não se pode dar por vencido mesmo quando tudo vai mal, jogadores; tem que lutar principalmente quando tudo vai mal.

Nem espero que recuperem o crédito perdido. Podemos chegar em algum lugar na Copa do Brasil (aguardemos a quarta-feira), mas não espero ir longe. Apenas quero que terminem o ano “no azul”, ou seja, paguem as dívidas com a torcida e façam um segundo semestre digno, mirando em 2017.

Sim, pois os “juros” de um eventual “cheque especial” serão enormes, e poderão ter impacto por muitos anos. Tem uma madeira aí? Bate três vezes.

Ariel Cabral, o baixista de “la banda”

(originalmente publicado no site Diário Celeste)

Muitos se perguntam porque Ariel Cabral não está rendendo como no fim do ano passado. Talvez seja prematuro fazer tal afirmação, afinal são apenas quatro jogos, mas essa é a amostra que temos. Particularmente, penso que Ariel não se adaptou (ainda) ao modelo de jogo que Deivid quis implantar no Cruzeiro, que consiste em jogar com bloco alto para dar suporte à circulação da bola e manutenção da posse.

Eu tenho o costume de dizer que o desempenho de um jogador de futebol nunca é responsabilidade apenas dele. Afinal, estamos falando de um esporte coletivo: as ações dos companheiros, do adversário, e também a estratégia tem influência no jogo, em todos os momentos. Inclusive é por essa razão que não gosto de dar notas individuais para jogadores, mas isso é assunto para outro texto.

Antes de entrar nas questões táticas, analisemos as características do argentino. É inegável que ele tem bom passe e ótimo senso de colocação. Em muitos momentos no ano passado, quando um jogador ficava sem opções ou recebia a pressão frontal de um adversário, lá aparecia Ariel para oferecer a linha de passe. Ele sabe ler o campo de jogo e se posicionar de forma a receber a bola e continuar a progressão. Esse princípio de jogo é chamado de apoio. Além disso, por vezes consegue executar o famoso último passe, sempre vertical, deixando companheiros na cara do gol.

Ariel Cabral: sempre oferecendo a linha de passe para dar apoio aos companheiros

Por outro lado, Ariel é um jogador com pouco dinamismo. Não é veloz, não é condutor de bola, nem tem bom drible. Ou seja, não é um jogador para realizar ultrapassagem — um princípio de jogo que é quando o jogador executa um passe e avança à frente da linha da bola. Tampouco é como alguns meiocampistas de infiltração, como Elias e Paulinho foram no Corinthians de Tite, ou pra ter um exemplo mais próximo dos cruzeirenses, Ramires no Cruzeiro de 2009. Willian Arão recentemente tem sido elogiado exatamente por ter essa característica no Flamengo deste ano.

Olhando tudo isso, parece fazer pouco sentido que Ariel jogue numa função em que ele tem que cobrir bastante campo. Independente se é ao lado de Henrique à frente da zaga numa dupla volância, ou se é pela esquerda numa trinca ou losango de meio-campo, Ariel não deveria ser responsável por correr grandes distâncias para fazer coberturas, ou ser opção de passe à frente da linha da bola. E é aí que penso que ele pode estar tendo dificuldades.

Ariel e seu posicionamento inicial “preferido”, por dentro e à esquerda no meio-campo

Em 2015, Ariel jogou exatamente nessas posições descritas no último parágrafo. Jogou em dois esquemas diferentes — o 4-3-3 do início da passagem de Mano e o 4-4-1-1 do final — mas o ponto comum era a altura do bloco defensivo do Cruzeiro. Com Mano, ele era mais baixo (ou seja, recuado), pois o treinador optava por ocupar espaços, marcando pra não sofrer gols ao invés de marcar para roubar a bola. Pode parecer estranho, mas existe diferença. Uma coisa é induzir o erro do adversário, fechando espaços, outra é subir a marcação, pressionar e sufocar o adversário até roubar a bola. Dois modelos de jogo diferentes, igualmente válidos.

Este ano, Deivid optou pela segunda opção. Prefere ter a bola sempre. Como as fases do jogo estão sempre conectadas — ou seja, ao atacar, tem que se ter cuidado com a defesa e vice-versa — para facilitar a circulação da bola e manter a posse, a linha defensiva joga bem longe da área de Fábio. Em alguns jogos, os zagueiros ultrapassaram a linha divisória do meio-campo, colocando os dez jogadores de linha no campo de ataque. A isso, chamamos de compactação ofensiva: isso aproxima os jogadores para que TODOS eles participem da fase de construção, criando superioridade numérica no setor da bola.

Assim, Ariel acabava por jogar com dificuldades ofensivas e defensivas. Com o time adversário muito recuado, seu senso de colocação nos espaços do adversário não era usado, pois ele sempre ficava para dar o primeiro passe. Ou seja, não conseguia dar apoio, sua melhor característica, ou mesmo encontrar o passe final. Deivid parece também tê-lo instruído a jogar indo e voltando, como um box-to-box: avançando para ser opção à frente da linha da bola, sendo que ele deveria ser o passe de retorno, e ao mesmo tempo recuando para defender e preencher o espaço. Com as linhas altas, um contragolpe do adversário simplesmente deixa Ariel vendido, pois ele não tem velocidade para fazer essa recomposição rápida.

Portanto, a questão me parece ser mais a forma que o Cruzeiro joga esse ano, que é bem diferente da do ano passado, do que uma queda de rendimento do próprio jogador, individualmente. Ariel não desaprendeu a passar a bola, nem perdeu seu senso de colocação: a estratégia coletiva é que parece estar emperrando estas virtudes do argentino.

Já que a última analogia com os bolos fez sucesso, aqui vai mais uma: imagino que Ariel é como se fosse o baixista de uma banda. Na maioria das vezes, é discreto, sereno, aparece pouco. Não tem intensidade, eletricidade, mas é fundamental para que a música fique completa. Porém, não adianta colocar o baixista para cantar ou tocar guitarra, funções de muito mais protagonismo e dinamismo, se ele não tiver essas qualidades. Penso que é assim com Ariel: talvez ele esteja tentando exercer funções que não tiram o melhor de suas características.

Finalizando, acredito que Ariel seja um excelente jogador para situações em que o Cruzeiro precise defender o resultado. Ao invés de cobrir um latifúndio de espaço, precisaria se preocupar com um pedaço bem menor de campo, sem a necessidade de correr grandes distâncias. Bola roubada, ele apareceria nos locais certos para ajudar o time a avançar e progredir até o campo adversário. Porém, para essa estratégia que Deivid que usar, acredito que Sánchez Miño seja um jogador mais adequado, pois esse sim tem o dinamismo para ir e voltar como parece ser a função do “meia esquerda” este ano. Se o Cruzeiro continuar jogando dessa forma, penso que não demora para que Miño assuma a vaga no time inicial.

A forma do bolo

(originalmente publicado no site Diário Celeste)

Imagine que você vá fazer um bolo. Pega uma receita bacana, com passos bem explicadinhos e nos mínimos detalhes. Só que você vai usar ingredientes de qualidade duvidosa, ou substituir alguns por “equivalentes”, como trocar o tipo de farinha. E mais: troca a ordem de alguns passos, ou erra em outros, como o tempo de cozimento. A chance do bolo ficar ruim é grande. Aí vem alguém e diz: “mas também, você fez nessa forma quadrada, devia ter feito naquela forma redonda.” Faz sentido?

Por outro lado, o bolo pode ser maravilhoso de olhar. Super bem feito, confeitado, com cores vibrantes. Ter um desenho lindo. Mas aí você vai comer e ele está horrível, com gosto de fermento, solado. Afinal, o que é mais importante?

Belo formato, bem bonito. Mas será que é saboroso? (foto: bolosespeciais2010.blogspot.com.br)

A analogia é simplista, mas é ótima pra entender porque botar a culpa SOMENTE no esquema tático pelo mau desempenho de uma equipe de futebol não é correto. Relembremos: o esquema tático é um resumo útil, que serve para explicar o posicionamento inicial dos jogadores no campo. Ele NÃO envolve a chamada “posição de origem” do jogador, nem também explica as funções exercidas por ele no plano de jogo. No fim das contas, o que conta mesmo é esta última parte: COMO os jogadores executaram suas funções, e não ONDE.

Sendo assim, não dá pra enfatizar o suficiente: não existe esquema melhor ou pior por si só. Pode-se ter tem uma preferência por algum, é gosto pessoal. Eu mesmo tenho. Porém, não afirmo que os esquemas que eu não gosto são ruins. Pois depende de vários fatores: os jogadores que tenho, as características deles e o plano de jogo que eu quero implantar na minha equipe. Plano este que, diga-se de passagem, é totalmente independente do esquema tático.

Na semana passada, após a vitória suada e sofrida do Cruzeiro contra o Tombense, a discussão era sobre o esquema tático do Deivid, que mudou do primeiro para o segundo tempo. Na etapa inicial, o mesmo 4-2-3-1 dos outros dois jogos, e na final um 4-3-3 bem claro. Dada a diferença de desempenho, muitos começaram a atacar o 4-2-3-1, como se fosse algo que não funcionaria mais, nunca, em lugar nenhum. Uma falácia: como dissemos, esquema tático, sozinho, não ganha e perde jogo nenhum. Depende muito mais dos jogadores e do modelo de jogo.

Um argumento bem mais aceitável é dizer que o 4-2-3-1 não serve para estes jogadores que o Cruzeiro tem. Mas veja, aí já estamos falando de algo ALÉM do esquema tático, que é a característica e qualidade dos jogadores. O que não dá pra dizer é que o “4-2-3-1 é ruim” e só isso. Diga-se: Marcelo Oliveira usava esse sistema em 2015, e foi taxado de teimoso de foi demitido. Mas foi o com esse mesmíssimo esquema que foi bicampeão brasileiro em 2013/14. Qual a diferença? Isso mesmo que você pensou: era outro elenco, jogadores diferentes, de características diferentes, que possibilitavam um modelo de jogo diferente. Não funcionou no ano passado, mas pros dois anos anteriores sim, e muito bem.

A formação do 2º tempo. contra o Tombense. Élber bem aberto segurando o lateral, MV armando e marcando, Henrique na dele e Miño dando dinâmica. No fim, Alisson e Rafael inverteram

Outra falácia é dizer que um esquema qualquer é “ultrapassado”. Ora, há várias equipes de alto nível no mundo jogando nos mais diversos esquemas. Muitas jogam no 4-3-1-2 com meio em losango — usado por Luxa na Tríplice Coroa, lá em 2003. O 4-2-3-1 é usado por várias equipes grandes: Arsenal e Chelsea são bons exemplos. No Brasil, quatro dos cinco times que foram à Libertadores esse ano usam: CAM, Grêmio, São Paulo e Palmeiras. Mesmo o 3-5-2 e o 3-4-3 são encontrados, como no Chile de Jorge Sampaoli. E até o 2-3-5 — um esquema da década de 1920 — foi resgatado e repaginado por ninguém menos que Pep Guardiola no Bayern de Munique.

Voltando ao Cruzeiro, eu particularmente gostei muito do 4-3-3 usado na segunda etapa, mas não é porque é o “esquema do Mano” (outro mito, como explicaremos adiante). Este sistema parece ser o que mais dá suporte para o modelo de jogo que Deivid quer implantar, de controle do jogo com a posse de bola, propondo e fazendo o adversário correr. Além de ser o que melhor se encaixa nas características dos jogadores que existem no elenco. Mas isso não quer dizer que isso não funcionaria num 4-2-3-1. Ao contrário, pode funcionar muito bem. Desde que se treine para isso e que os jogadores assimilem.

O “esquema do Mano”

Muita gente também argumentou que o problema foi que “Deivid não deu sequência ao trabalho de Mano porque mudou o esquema tático”. Há um erro e um acerto nessa frase. De fato, Deivid não deu sequência ao trabalho, preferindo implantar sua própria forma de jogar. Mas essa mudança foi muito menos no esquema tático do que em qualquer outra coisa. Explico.

Uma rápida retrospectiva: Deivid, ainda na condição de interino, jogou no 4-1-4-1 contra a Ponte Preta no ano passado, inclusive sendo o responsável pela “inversão” de Henrique e Willians. Mano assumiu e deu continuidade, mas percebeu que a recomposição do ponteiro direito (na época, era Alisson) não estava acontecendo bem, e instruiu Willians a abrir cada vez mais para a direita para cobrir, com Henrique indo se alinhar a Ariel. Primeiro era só um movimento sem bola, mas depois Willians foi “efetivado” como ponteiro, dando liberdade para o agora ex-ponteiro direito circular, desenhando um 4-4-1-1, com Henrique alinhado a Ariel. Isso perdurou até o fim do ano.

Esse era o Cruzeiro de Mano na partida contra o JEC. Três volantes? Só “de ofício”: Willians era ponteiro direito

De forma que, se você olhar bem, o 4-2-3-1 que Deivid tentou nos três primeiros jogos é bem próximo do desenho que Mano usou no fim do ano. A diferença é o posicionamento dos ponteiros: com Mano, eles recuavam para ocupar o espaço na ponta da linha média, independente do movimento adversário. Com Deivid, os ponteiros permanecem à frente, só recuando caso o lateral adversário ataque o setor. Mas em termos de sistema, é muito semelhante: linha de quatro, dois alinhados à frente da zaga, dois abertos, um por dentro e um à frente.

Mas se o esquema é parecido, com Ariel e Henrique alinhados à frente da zaga, porque o time está tão diferente? A resposta está no modelo de jogo. Com Mano, o Cruzeiro se compactava atrás, defendendo os espaços. Assim, não precisava ficar correndo pra trás pra recompor. Com Deivid, as linhas são muito mais altas, o time tenta se compactar à frente, marcando alto. Se o time adversário consegue passar, vai ter campo pra avançar, e todo mundo tem que correr pra trás. A ruptura está muito mais aí: na forma de jogar, e nem tanto no desenho da equipe. Portanto, justificar o desempenho abaixo do esperado dizendo que Deivid rompeu com o esquema tático de Mano é uma meia verdade.

“Falem mal, mas falem de mim?”

Concluindo, é bem legal que cada vez mais e mais pessoas falem sobre tática. Isso melhora o entendimento do jogo e também a cobrança da torcida, a cobertura dos jornalistas e a qualidade das informações. Em geral, melhora o futebol. Porém, como ainda é uma coisa nova para muitos, certos mitos aparecem e são difíceis de combater. Esse é um deles: o esquema tático. Muitos nem sabem qual é a definição formal, e outros até sabem, mas limitam a análise apenas a isso.

Que seja. Para melhorar o futebol brasileiro, tem que ser como nos seriados japoneses: é preciso enfrentar um monstro diferente por vez.