Superioridade (numérica)

Se me dissessem pra resumir a parte tática no futebol — e tudo que a ela envolve, como sistema, estratégia e afins — em uma frase só, eu diria que é “buscar ter mais gente perto da bola que o adversário”. Em qualquer momento do jogo: com bola, sem bola, bolas paradas. Na defesa, no meio-campo, no ataque. Por dentro, pelos lados. Isso não varia nunca.

O que muda, de fato, é a forma como os treinadores pensam pra atingir esse objetivo. E no jogo de ontem, no qual Cruzeiro e Atlético/PR empataram e o Cruzeiro avançou de fase pela Copa do Brasil, se pôde ver muitas dessas diferentes formas de buscar essa superioridade numérica.

Sem a bola

A primeira é mais óbvia: quando o Cruzeiro se defende, formava as duas linhas de quatro tão características dessa equipe, deixando apenas Thiago Neves e Sobis à frente. Rafinha e Arrascaeta fechavam os lados, com os volantes por dentro e a linha defensiva postada atrás. Mas futebol, como se sabe, não é totó, e as movimentações dos jogadores procuravam a superioridade numérica. Se a bola vinha pelo lado esquerdo (direito do adversário), o ponta do lado contrário (no caso, Rafinha) centralizava bastante, deixando o corredor esquerdo livre. Tudo pra que tenha um acúmulo de jogadores no setor da bola e criasse também um sistema de coberturas. A mesma coisa ocorria se a bola entrava pelo lado direito: Rafinha dava o combate, os volantes se aproximavam e Arrascaeta fechava bem no centro, deixando o lado direito aberto.

Isso até funcionou de maneira razoável, já que o Cruzeiro pressionava bastante o adversário com a bola e fechava linhas de passe próximas, obrigando o jogador a voltar com a bola ou tentar um passe mais difícil, que resultava em erro. Poucas vezes o Atlético-PR conseguiu inverter de lado a jogada pra aproveitar este espaço, e quando o fez, não foi de maneira rápida, de forma que o Cruzeiro conseguia rodar e mudar a pressão de lado até a bola chegar lá.

Léo longe da linha defensiva, encaixado no seu jogador; Rafinha bem fechado por dentro; ponta oposto do CAP “livre”; acúmulo de jogadores sobre a bola. Mesmo assim, o passe para o centroavante sai, na única finalização certa do adversário

O que não gostei muito foram os encaixes de marcação. O Cruzeiro marca por encaixes no setor, isto é, jogadores ficam em suas zonas, mas quando um adversário entra ali, o cruzeirense cola nele e vai com ele até o fim da jogada. Se a bola sai de perto, aí eles voltam para as suas zonas. Por vezes víamos Rafinha atrás de Edilson, por exemplo, o que é um forte indício deste tipo de marcação: Rafinha encaixava no lateral e Edilson no ponta, e quando o lateral passava, não havia a “troca” de marcação típica de uma zonal pura: Edilson continuava com o ponta e Rafinha afundava até o fim com o lateral deles.

Do lado esquerdo do Cruzeiro, isso era ainda mais claro. E esse tipo de marcação gerava, por vezes, uma indefinição para Egídio, que começava na saída de bola do Atlético/PR. O time paranaense, quando entrava em modo de construção, realizava o que se chama de “saída de 3”: três jogadores ficam por trás para gerar superioridade numérica — olha ela aí — e sair com a bola mais limpa. No caso, um volante entrava entre os dois zagueiros, que abriam, formando temporariamente uma linha de 3. Os laterais subiam ao mesmo tempo, empurrando os pontas do Cruzeiro pra trás, e assim apenas Sobis e Thiago Neves encurtavam nos zagueiros. Com dois contra três, Paulo André, o zagueiro da direita, por vezes conseguia bastante campo pra conduzir a bola sem ser incomodado. Quando o fazia, Arrascaeta tinha que deixar Jonathan para pressionar, e Egídio não sabia se permanecia na linha de 4 contra o ponteiro ou se saía pra combater Jonathan. Na maioria das vezes, Egídio deixava o ponta para os zagueiros pegarem e subia a marcação. Mas em pelo menos duas vezes, o lateral direito do Atlético/PR teve chance de fazer um cruzamento limpo.

Com a bola

Já quando atacava, o Cruzeiro procurava muito os lados do campo. Talvez até induzido pela marcação do Atlético/PR, que fechava bem o corredor central, empilhando jogadores na entrada da área — superioridade numérica. Muito dessa falta de jogo pelo meio decorre, claro, da falta de um centroavante que pudesse fazer a parede num passe vertical e deixar para alguém chegar de trás. Tanto é que, com a entrada de Raniel, a equipe passou a atuar num 4-2-3-1, e Raniel conseguiu dar um bom apoio pelo centro em várias jogadas.

Além disso, Thiago Neves também não está em seus melhores dias tecnicamente, pois essa região do campo é dele, entre as linhas do adversário. Em um setor tão vigiado, é preciso ter técnica para se desvencilhar da primeira pressão (que chega imediatamente ao receber a bola) e ter um mínimo de tempo pra olhar o jogo de frente e dar o passe. Outra forma de se ter espaço ali é se desmarcar, movendo-se alguns passos e se separando momentaneamente do marcador. O passe tem que entrar exatamente nessa hora, é uma janela de tempo curta. Em vários momentos, Thiago fazia esse desmarque, mas não recebia a bola. O time também precisa procurá-lo mais.

Os volantes do Cruzeiro também tem uma parte nisso. Até porque, Lucas Silva é volante passador, fica na base da jogada, não faz jogo entre as linhas do adversário, não pisa na área. Até por isso, Henrique, que é o volante de pegada, tem feito também um trabalho de infiltração que não é lá bem sua característica. Então essa parte do campo fica menos povoada com cruzeirenses, e o Atlético/PR, novamente, tem superioridade numérica no setor.

Henrique pedindo a bola em uma infiltração: tem feito, mas não é bem a a característica dele

Restou, portanto, jogar pelos lados. Mas sem um alvo claro na área, por exemplo, um bom cabeceador, ou mesmo sem ter a área muito povoada, não era muito frutífero ficar cruzando bolas a esmo. O Cruzeiro buscava cruzamentos cirúrgicos, às vezes buscando um jogador mais baixo na segunda trave, às vezes um cruzamento rasteiro pra quem vem de trás. Sem sucesso, é uma jogada muito difícil de entrar.

O gol

Tudo isso resultou num jogo de poucas finalizações, de ambos os times. Não é surpresa, portanto, que o gol do Cruzeiro tenha saído em uma jogada de contragolpe, que é uma das situações em que se busca ter superioridade numérica no campo ofensivo, pegando o adversário desorganizado. Como já eram decorridos 80 minutos, e o Atlético/PR precisava de gols, passou a pressionar alto. E futebol é cobertor curto: se você marca lá na frente, dá o espaço às costas da sua defesa. O Cruzeiro conseguiu bem sair da pressão adversária trocando de lado. Aqui, destacamos o passe Edilson/Raniel, tanto pela boa leitura e execução do lateral quanto pela movimentação inteligente do centroavante para buscar o espaço. Sempre gosto de dizer que um bom passe é obra tanto de quem executa quanto de quem recebe. É uma tarefa de dois jogadores.

O passe Edilson/Raniel que quebrou a segunda linha do CAP: origem

O passe de Edilson venceu de uma só vez toda a segunda linha do Atlético/PR, que estava correndo pra trás pra defender o contragolpe. O quarteto ofensivo do Cruzeiro, de repente, se viu com apenas os dois zagueiros à frente: novamente, superioridade numérica. E quando se tem mais gente que o adversário, é sempre mais fácil fazer a jogada. Robinho passa, recebe e já sabe que Arrascaeta está chegando por trás, e passa a bola sem olhar. Arrascaeta quase perde a chance, mas se recupera e conclui para o gol.

O passe Edilson/Raniel que quebrou a segunda linha do CAP: destino

Mesmo com a vantagem, o Cruzeiro surpreendentemente não se fechou totalmente, e ainda teve mais uma chance com Robinho, novamente em lance de superioridade numérica, 4 contra 3. Mas no fim, com apenas mais alguns minutos por jogar e com a vantagem que já existia no empate ampliada pelo gol, era natural um relaxamento. Bergson conseguiu empatar numa desatenção dos zagueiros, ainda que exista mérito na jogada do atacante paranaense, uma tentativa de chapéu dentro da área que surpreendeu.

Atacar defendendo (por enquanto)

Ao fim, valeu a classificação. Cruzeiro fez um jogo seguro defensivamente, com alguns detalhes aqui e ali como dito no texto. Mas nem sempre será assim, alguma vez um outro time pode conseguir um gol numa bola parada por exemplo, e tudo muda. Não é muito saudável ficar sempre andando no fio da navalha, no limite da classificação ou da vitória, pendurado por um gol. E isso nem é culpa da defesa, mas sim da produção com a bola. Cruzeiro depende um bocado de seu meia central em boa forma técnica para conseguir ter mais jogo ofensivo, como dito acima. E também de um centroavante, esse sistema de jogo do Cruzeiro praticamente pede por um. Sem um atacante central, tem sido bem difícil, neste sistema, criar chances claras.

Otimista que sou, espero sinceramente que Thiago Neves volte à sua melhor forma mais próximo do jogo contra o Flamengo pelas oitavas da Libertadores, que é o sonho do torcedor. Claro que bons desempenhos no Brasileiro serão bem-vindos. E a chegada de Barcos, juntamente com a recuperação de Raniel e, mas tarde, de Fred, nos faça voltar a ter uma produção ofensiva. Oxalá!