“Podosferomania”

(originalmente publicado no site Diário Celeste)

Podosferomania: (s.f.) Obsessão pela bola de futebol. (do dicionário de neologismos do Candian, 2016)

Foram só dois jogos oficiais, mas já dá pra observar algumas coisas em relação ao modelo de jogo que Deivid quer implantar no Cruzeiro. E a temporada de 2016 começa com o time gostando de ter a redonda em seus pés. Sempre. Isso é mostrado pelos números da Footstats nesses jogos: 62% de posse de bola contra o Criciúma, fora de casa, e quase 70% contra a URT, com 600 ou mais passes tentados em cada jogo. Para se ter uma ideia, no Brasileirão 2015 inteiro, em apenas 5 jogos alguma equipe conseguiu romper essa marca.

Média de passes por jogo no Brasileiro 2015 (fonte: Footstats)

Deivid já disse em várias oportunidades que se inspira muito em Luis Aragonés, que foi o treinador da Espanha da Euro de 2008, a primeira a usar o estilo conhecido como tiki-taka, que nada mais é do que esse estilo de valorizar a posse de bola. Ele prega que, ao trocar passes incessamentemente, a chance do adversário se desorganizar é maior. O Barcelona de Guardiola levou esse estilo à perfeição no final da década passada. É claro, ninguém espera que Deivid faça do Cruzeiro um time mágico como aquele Barcelona, mas dá pra dizer que a ideia é parecida, ainda que com algumas diferenças e ajustes.

Nesse ponto, o Cruzeiro de Deivid difere e muito do de Mano Menezes. Vai muito além da simples troca de Willians por Marcos Vinícius: é o que se chama de modelo de jogo, ou seja, uma orientação geral que todos os jogadores tem em comum para saber o que fazer em determinados momentos do jogo: defendendo, atacando e nas trocas de um momento para o outro.

O Cruzeiro de Mano era um time que se protegia compactado defensivamente, marcando por zona (ou seja, o jogador ocupa um espaço ao invés de marcar um adversário). Quando roubava a bola, se possível, procurava o contra-ataque rápido. Já em momento ofensivo, avançava pouco as linhas para prevenir contras, mas com mobilidade para progredir no campo e finalizar. E se perdia a bola, pressionava apenas para atrasar a ação do adversário e dar tempo ao sistema defensivo recompor, sem necessariamente ter o objetivo de roubar a bola.

(Leia mais sobre o modelo do Cruzeiro de Mano neste post do blog Painel Tático, no qual colaborei.)

Já o de Deivid quer a bola sempre. Nos raros momentos defensivos observados até aqui, não marca à zona: os jogadores preferem fazer perseguições para evitar que o passe seja feito. A ideia é que os homens da frente também subam a pressão no portador da bola, já que o objetivo é roubá-la: o time se defende com posse, já que se o adversário não tem a bola, não pode marcar gols. Quando recupera a bola, primeiro cuida para que ela fique segura para só então iniciar a fase ofensiva, na qual a circulação da bola é a prioridade, com linhas bem altas e o quarteto de frente se mexendo para desorganizar o sistema defensivo adversário. Na transição defensiva, a pressão é imediata, sempre com o objetivo de recuperar a posse. Ou seja, tudo é em função dela: a bola.

“Sua linda, vem cá, te quero mt #t_amo_bola”

Dessa forma, podemos dizer que não houve continuidade, e sim uma ruptura. Ainda que seu sistema tenha um desenho parecido — linha de quatro, dois à frente da defesa, dois pelos lados e dois por dentro, com um deles ligeiramente mais atrás — o time de 2016 joga de uma forma muito diferente do time do fim de 2015. O que soa estranho é que Deivid foi apresentado exatamente como uma solução para, em tese, manter o que vinha dando certo com Mano. Mas não é isso o que se pôde observar até aqui.

Em tempo, não estou dizendo que discordo nem que concordo. O futebol é democrático e há várias formas de se jogar, e não estamos falando aqui apenas do desenho tático. Por exemplo, muitos times no país jogam no contragolpe puro e simples: marcam até roubar a bola e progridem o mais rápido possível. Outros preferem ter o controle da bola, mas tentando resolver a jogada rapidamente. São estilos. Deivid e seu “tiki-taka brasileiro” é apenas isso: um estilo. É claro que há críticas, nem o Barcelona, o ícone dessa forma de jogar, escapou delas.

Até que ponto Deivid teve carta branca para implantar isso, não sabemos. Somente a diretoria do Cruzeiro pode responder. A impressão que fica é que Deivid quer dar logo sua cara ao time, de maneira a perder a aura de “auxiliar técnico” que ainda paira sobre sua cabeça e que gera desconfiança na torcida mais exigente do país. É um movimento arriscado, mas muito corajoso. Se vai dar certo ou não, só o tempo dirá.

Implantar essas mudanças leva tempo, como sempre foi no futebol. Os jogadores precisam assimilar a nova forma de jogar, acostumar aos movimentos dos companheiros. Isso pode ser visto de jogo pra jogo: contra o Rio Branco, o time se movimentou bem no início da partida e criou, mas Deivid reclamou da compactação ofensiva, ou seja, a defesa ficava muito recuada, longe dos volantes, e o adversário teve tempo na bola entre essas duas linhas. No jogo seguinte, contra o Criciúma, isso foi corrigido, mas gerou outro problema: como o espaço nas costas da defesa é grande, se não cuidar bem da bola na saída, um passe mal colocado pega todos os jogadores à frente da linha da bola, gerando oportunidades de contra-ataque do adversário. Já contra a URT, isso foi corrigido também, mas o Cruzeiro exagerou na dose: cuidou tanto da bola que ficou pouco incisivo. Além disso, não apresentou a mesma mobilidade dos outros jogos, aceitando a marcação zonal da URT. Com isso, criou muito pouco, ainda mais levando em conta o grande volume que teve.

Eu poderia terminar dizendo que resta saber se a torcida terá paciência, mas, cá entre nós, sabemos que não. O que realmente resta saber é se a diretoria vai aguentar a pressão das críticas, que já chegaram fortes, e bancar o tempo necessário para que Deivid consiga implantar seu estilo. Considerando que o próprio treinador disse que espera ter um time melhor formatado na quarta rodada do estadual, então isso é o mínimo que devemos esperar.

Confesso que estou curioso pra ver onde isso vai dar. Se encaixar, será um time de encher os olhos. Se encaixar.

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