Em uma das crônicas do excelente Zonal Marking, blog de análise tática do jornalista Michael Cox, li que um dos times analisados pecou por não ter “capitalizado” o domínio que teve no primeiro tempo, e por isso perdeu a partida. Gostei do termo, e por isso replico no título desta análise, pois foi exatamente isso o que aconteceu na estreia cruzeirense no novo Maracanã contra o Fluminense.
Capitalizar é, a grosso modo, juntar mais dinheiro ao dinheiro investido. Também tem o sentido de agrupar, reunir. Traduzindo para o futebol, o “investimento” seria dominar a posse da bola e finalizar bastante, e o “retorno”, ou os “juros”, seriam os gols. Pois mesmo asfixiando o time carioca no seu próprio campo com a intensidade que lhe é característca na recomposição, o Cruzeiro não conseguiu vencer Diego Cavalieri — ou a trave — quando finalizou no primeiro tempo, e depois, com a partida já mais equilibrada, sofreu um gol que definiu a partida.
Escretes e sistemas
Marcelo Oliveira repetiu o time das últimas partidas e mandou a campo o seguinte onze: Fábio no gol, Dedé e Bruno Rodrigo no miolo da linha defensiva, com Mayke e Egídio fechando pelas laterais direita e esquerda. Nilton e Souza se alinharam à frente da zaga, dando suporte para Ricardo Goulart no centro do meio-campo ofensivo, que ainda tinha Everton Ribeiro pela direita e Luan pela esquerda, todos tendo como alvo o garoto Vinicius Araújo à frente. Ou seja, o mesmo 4-2-3-1 se sempre.
Já o Fluminense do estreante Vanderlei Luxemburgo abandonou o 4-2-3-1 que Abel Braga implantou durante dois anos no time carioca, e se postou no esquema preferido de Luxa: o 4-3-1-2 losango. Foi com este esquema que ele venceu a Tríplice Coroa em 2003 (um tempo bom, que voltará). O goleiro Diego Cavalieri teve Jean na direita, Carlinhos na esquerda e Gum e Leandro Euzébio na zaga. Edinho era o volante plantado, com Wagner pela esquerda levemente mais avançado e Diguinho pela direita, mais combatendo do que saindo pro jogo. Tudo isso para liberar Deco, o meia armador, com Rafael Sóbis se movimentando à frente e Fred como referência na área.
Encaixes
Tipicamente, no encontro de um 4-2-3-1 contra um losango, um dos times tem mais amplitude no ataque, dominando as ações pelos lados, enquanto o outro tem mais número na faixa central e por isso domina a posse de bola no setor. Na prática, porém, o Cruzeiro dominou os lados como esperado, mas também o meio-campo, com uma postura bem enérgica principalmente na transição defensiva, também conhecida como recomposição — uma das quatro fases do jogo, sendo as outras três posse de bola, posse do adversário e transição ofensiva, o famoso contra-ataque.
Além disso, sem jogadores abertos no ataque, o Fluminense deu liberdade aos laterais cruzeirenses, que são atualmente a melhor saída de bola do time. Na tentativa de frear estas ações — e talvez por estar acostumado a jogar no 4-2-3-1 duranto muito tempo, como o próprio Luxemburgo disse — Wagner e Diguinho abriam, saindo do meio-campo central, tirou a vantagem numérica que o Fluminense teoricamente teria por ali. Assim, o Cruzeiro não só teve melhor saída como também teve mais posse de bola.
O grande perigo seria Deco. Solto, o meia poderia sempre dar uma opção de passe para que o Fluminense saísse construindo o jogo de trás, e uma vez recebida a bola, achar um companheiro mais colocado. Porém, não só Deco não conseguia receber a bola devido à intensidade na marcação sobre a bola dos homens de frente do Cruzeiro, como também não tinha boas opções quando de fato tinha a posse em seus pés. Portanto, ou ele fazia um passe sem verticalidade ou errava o passe.
Tudo isso foi deixando o time da casa nervoso e o Cruzeiro mais à vontade, criando bastante e finalizando com frequência, mas sem eficiência. Um perigo neste tipo de jogo, onde o adversário tem qualidade mas está passando por um mau momento. Um gol no primeiro tempo — que seria merecido pelo que aconteceu na partida — deixaria o Cruzeiro muito mais tranquilo e o Fluminense bem mais pressionado.
Felipe
O domínio durou até os 35 minutos, quando ainda no primeiro tempo Deco deu seu lugar a Felipe. A princípio pensava-se ser por opção técnica, mas depois saiu a informação de lesão na coxa do luso-brasileiro. Conveniente, pois a substituição melhorou o Fluminense, equilibrando um pouco mais a partida. O Cruzeiro ainda era melhor, mas já não dominava as ações com facilidade.
O Fluminense melhorou porque Wagner foi ser o vértice avançado e Felipe o esquerdo do losango de meio-campo. Basicamente, o principal passador do time, que antes era Deco, havia sido deslocado pra trás, com Felipe. Com uma opção melhor já no primeiro passe, o Fluminense conseguiu trocar mais bolas e chegar à frente pelo chão com mais frequência. Também, ao perder a bola, Wagner ia bater com Mayke, abandonando o meio-campo central, enquanto Sóbis abria pela direita para frear Egídio, encaixando a marcação com Nilton, Souza e Goulart no triângulo de volantes cariocas — o losango se transformava num 4-3-3 ao defender.
Porém, o Cruzeiro ainda tinha mais intensidade na recomposição, e por isso ainda era um pouco melhor na partida. Mas o zero a zero persistiu, e o resultado só não foi mais injusto porque o pênalti inexistente sobre Wagner foi defendido brilhantemente por Fábio, vencendo Fred duas vezes.
Segundo tempo
Sem trocas, o jogo seguiu mais equilibrado após o intervalo. Como é natural, o Cruzeiro já não pressionava tanto o homem da bola como no início do jogo. Aos 17, Marcelo começou o jogo de xadrez contra Luxa, tirando Luan para lançar William. O recém-chegado da Ucrânia foi, a princípio, jogar no mesmo local, pela faixa esquerda. O estilo, porém, é bem diferente: enquanto Luan é mais físico e brigador, William é mais veloz e driblador. Além disso, William não faz tão bem a marcação do lateral quanto Luan.
E foi nisso que Luxemburgo apostou quando, quatro minutos depois, tirou Diguinho do meio, colocou o garoto Igor Julião na lateral direita e avançou Jean para a sua posição original. O Fluminense, que já ganhava o meio-campo a essa altura, teve ainda mais qualidade no passe, já que Jean tem bem mais criatividade que Diguinho, um jogador praticamente apenas de combate. E na lateral, o garoto Julião foi bem voluntarioso, ultrapassando pela direita e dando opção no ataque sem medo de deixar William às suas costas.
O jogo ficou aberto e chances apareceram de lado a lado, a mais perigosa numa jogada de dribles rápidos de Egídio — o que vem sendo sua especialidade. O lateral avançou até o círculo central com a bola, dando de calcanhar para Everton Ribeiro que chutou no cantinho, para boa defesa de Cavalieri.
Luxemburgo quis dar ainda mais consistência a seu lado direito, colocando o garoto Kennedy aberto por aquele lado no lugar de Wagner e invertendo Rafael Sóbis para a esquerda, oficializando o 4-3-3 (ou 4-1-2-3). Marcelo respondeu com Lucca na vaga de Vinicius Araújo, avançando Ricardo Goulart para o ataque e centralizando Everton Ribeiro — Lucca e William passaram a alternar pelos flancos.
O feitiço contra o feiticeiro
Mas Everton Ribeiro, William e Lucca não guardavam suas posições, tentando naturalmente confundir a marcação carioca. De certo modo funcionava, mas compromentendo a recomposição. Com Felipe e Jean no meio, o Fluminense inverteu as jogadas de lado com mais facilidade e por várias vezes Carlinhos e Julião, os laterais adversários, tiveram campo para avançar e ajudar no ataque — numa inversão do que acontecia no início da partida. O castigo veio exatamente em passe de Felipe para Carlinhos totalmente livre na esquerda, já que Mayke estava compondo com os zagueiros dentro da área. O cruzamento foi errado, mas a defesa celeste errou ao deixar tanto Kennedy quanto Fred sem marcação — o primeiro errou a finalização mas acabou passando sem querer a Fred, que concluiu de cabeça para o gol.
E, da mesma forma que no primeiro tempo um gol traria tranquilidade ao Cruzeiro, o Fluminense se acalmou e se contentou e fechar as investidas celestes, que já não eram tão perigosas. O cabeceio de Ricardo Goulart sozinho dentro da área, completando escanteio da direita, foi pra fora, decretando a segunda derrota injusta do Cruzeiro neste campeonato.
Só no futebol
É claro que perder é ruim em qualquer circunstância. Porém, diferentemente dos últimos dois anos, a derrota foi um capricho do futebol, o famoso “quem não faz leva” — que se não fosse um pouco verdadeiro não seria um chavão — e não porque o adversário foi superior. Parece loucura dizer uma coisa dessas, mas o mais importante não foi o placar, e sim que o time demonstrou consistência tática, tanto defensiva quanto ofensivamente.
Bom, pelo menos enquanto os titulares estiveram em campo. As mexidas de Marcelo Oliveira desta vez não funcionaram tão bem, principalmente a saída de Luan, que afrouxou um pouco a marcação pela esquerda. Talvez aqui tivesse faltado um pouco de variação tática, quem sabe um 4-3-1-2 losango ou um 4-3-3 clássico, pra anular um pouco a qualidade de passe que o meio-campo do Fluminense ganhou com a entrada de Felipe. Luxemburgo venceu o duelo desta vez, pois fez uma melhor leitura da partida.
Mas pedir variações táticas dentro da mesma partida, e ainda com jogadores que jogaram pouquíssimo junto com os titulares — Lucca voltando de contusão e William recém-chegado — de um time ainda eu seu primeiro ano talvez seja demais. Assim, a confiança ainda permanece. Afinal, a derrota veio em uma circunstância da partida, que poderia ser totalmente diferente se o domínio no primeiro tempo fosse transformado em gols.
Enfim, esse é o futebol: nele, e só nele, o melhor pode perder uma partida.